Tropeços
A vida de um intelectual é toda cheia de peripécias, pois, na maioria das vezes, nada possui, vivendo de um salário que ele sempre julga ser mesquinho e o empregador sempre julga excessivo…
Precisa trajar bem, ser lhano no trato, cortês e afável, e enfrentar esse mundo de “nouveau riche” que tudo tem, exceto aquele “polish” inato que o vil metal não pode suprir.
Nos primórdios de minha carreira, o professor nada percebia durante as férias. Tornava-se, portanto, necessário dedicar- se a outra ocupação que se tornaria então a essencial, e o ideal passava a ser “bico”.., o que hoje está desaparecendo, porque não existe mais ideal.
Recordo-me bem do meu primeiro emprego. Foi numa firma americana. Um frigorífico. Boa direção, e honesta, tudo fazendo pelo interesse da firma, colocando a cabeça acima do coração. Nada de sentimentalismo. Exigiam o máximo, pagando o mínimo. Preenchi uma proposta, onde tive que responder a uma série de perguntas. Vasculharam minha vida, meus vícios e minha ideologia. Queriam saber quantos cigarros fumava por dia, e até minha bebida de predileção. Anexa à proposta havia uma série de, problemas sobre cálculo de rendimento, de fretes marítimos em moeda estrangeira, divisão proporcional. Aprovado, fui levado ao gerente.
Não estava eu habituado a enfrentar homens de franqueza rude, homens que haviam sido escolhidos entre milhares de outros para gerir os destinos de uma empresa em que se invertera uma fortuna incalculável. Olhar duro e penetrante, como a querer ler aquilo que eu não havia, escrito. Fez-me ele ciente de minhas obrigações, todas elas razoáveis, pois solicitavam minha dedicação, pontualidade e honestidade. Dentre as recomendações, achei bastante esquisita uma delas, e que só mais tarde pude compreender. Não poderia eu brigar de modo algum com meu chefe de seção, senão seria dispensado sumariamente.
Foi chamado aquele que viria a ser meu chefe. Este me conduz à mesa de trabalho, apresentando-me aos demais colegas de seção. Notava neles olhares furtivos como a me dissecarem. Pairava certo ar de inquietude. Queriam saber de minhas qualificações. Queriam avaliar o meu “pedigree” para fazer uma estimativa de qual teria sido meu, ordenado inicial, que, segundo me haviam dito, seria confidencial, mas que logo ficou sabido ele todos.
Designou ainda o gerente um rapaz para que me ensinasse o serviço dele, pois queria que eu aprendesse o serviço de todos para poder substitui-los em qualquer impedimento. Sempre fui ensinado pela metade. Os segredos do ofício nunca me eram revelados, e sempre com aquela boa vontade que eu compreendo mas não justifico. Portanto, meu trabalho sempre apresentava alguma falha; fruto de um mau aprendizado;
Meu chefe era um desses indivíduos que não haviam terminado nem o curso primário mas que, à custa de muita perseverança, e longo tirocínio foi galgando os postos e havia chegado ao máximo a que poderia ansiar . Cioso de sua posição, mais parecia o dono da empresa… “tout rempli de soi même”, apavorado, narciso.
Nessas grandes companhias, era praxe fazer-se um balancete mensal. Numa ocasião, fui repreendido pelo gerente por ter fornecido dados inexatos. Olhei em torno de mim e pude perceber aquele sorriso de satisfação de meus colegas. Criando coragem, voltei-me ao chefe e perguntei-lhe por que não me havia defendido; fizera o trabalho conforme suas indicações e, ademais, havia sido entregue a ele para ser verificado. Replicou-me então que as instruções eram dadas por escrito em inglês, e que ele nada compreendia daquele idioma, razão por que me orientara erradamente…
É exatamente isso o que se passa conosco em nossos dias. Indivíduos há, salvo honrosas exceções, que ocupam postos de chefia aos quais não estão afeitos, e o resultado estarrecedor é esse que contemplamos. Poderia mencioná-los, mas sei que a tesoura de nosso simpático redator-chefe entraria em ação, e eu não quero proporcionar-lhe esse dissabor. Os obstáculos que se encontram na ascensão são de caráter humano. A maldita inveja impera em todos os setores. Ninguém faz nada sem tirar uma casquinha. O Governo serve para ele se aproveitar e na calada ir-se em comitiva designar pessoas que só conseguem vencer sorrateiramente, mas que jamais conseguem impor-se.
É, pois, como simples soldado raso, que procuro cumprir o meu dever para com a Pátria. Crendo honestamente que o estou fazendo, ouso desacatar a tudo e a todos, e dizer que está tudo errado. O nosso querido Brasil está sendo traído pelos seus próprios filhos, tragado no turbilhão do caos pela inadvertência e falta de patriotismo de grande parte de responsáveis – verdadeiras canas agitadas pelo vento…